3 de abril de 2013

Existe algo além desse "eu" ?




Jiddu Krishnamurti



Se constantemente, estiverem procurando, interrogando, duvidando, então surge o discernimento no qual há iluminação.
(...)
Todos podem ser levados à dúvida por outrem, a duvidar do próprio conhecimento, da própria compreensão que houverem colhido, por meio do sofrimento de vocês. Porém, a dúvida que não for oriunda de vocês mesmos, não purificará. Somente purificará as suas crenças estreitas, só dará estabilidade à sua estreita forma de culto à personalidades, se você se apegarem a algo que, de momento, é um conforto e, portanto, uma traição à verdade. Mas, se houverem convidado a dúvida na plenitude do coração de vocês para colocarem à prova essa compreensão da verdade da qual colheram um vislumbre, então, duvidando da própria dúvida, o que permanecer será puro, absoluto e final.

E a fim de que possam compreender o absoluto e o eterno, devem ter experimentado a sombra da dúvida lançada sobre o entendimento de vocês. E, como a maioria das pessoas temem a dúvida, pensam ser um crime, um pecado, expulsam a dúvida de suas mentes, acrescentando assim a sua estreiteza, a sua mesquinhez na adoração de personalidades, em seus abrigos que acalentam decadência e conforto.

Ao contrário, se convidarem a dúvida para entrar no coração e na mente de vocês e se acompanharem a dúvida, logicamente, por todos os seus caminhos, avenidas e sombras da mente e do coração e incansavelmente escutarem e examinarem todas as coisas, então, o que permanecer será do próprio conhecimento de vocês, e, portanto, o absoluto, o eterno.
(...)
Existe contradição de ideias, teorias, criadas pelas constantes afirmações dos dirigentes, a respeito do que é e do que não é.

Alguns deles dizem que Deus existe, outros que não existe. Alguns sustentam que o indivíduo vive após a morte; os espíritas proclamam haver provado que existe continuação da mente individual; — outros dizem que só existe o aniquilamento. Alguns acreditam na reencarnação, outros a negam.

Empilha-se teoria sobre teoria, incerteza sobre incerteza, afirmação sobre afirmação. O resultado de tudo isto é que o indivíduo fica integralmente incerto; ou então, o indivíduo fica tão cercado, tão limitado por conceitos e formas de crenças particulares, que recusa ponderar sobre o que realmente é verdadeiro. Ou estão incertos, confusos, ou estão certos nas suas crenças e na forma particular de pensamento. Para o homem que está verdadeiramente incerto, há esperança; para o homem, porém, que está incrustado na crença, naquilo que ele chama intuição, há pouquíssima esperança, pois fechou a porta à incerteza, à dúvida, e acha repouso e consolação na segurança.

Imagino que a maioria de vocês estejam incertos, confusos, portanto, profundamente desejosos de compreender o que é a realidade, o que é a verdade.

A incerteza engendra o medo, o qual dá nascimento ao desânimo e à ansiedade. Depois consciente ou inconsciente, começa o indivíduo a fugir desses temores e suas consequências.

Observem  os seus pensamentos, e surpreenderão este processo em operação. À medida que anseiam por se assegurarem do propósito da vida, do além, de Deus, começam a se aperceber dos seus desejos, por meio dessa investigação, sobrevém a dúvida, a incerteza. Depois essa mesma dúvida e incerteza criam o medo, o isolamento, a vacuidade ao redor e em vocês mesmos.

Isto é um estado necessário para a mente, porque então ela deseja experimentar e compreender a realidade.

Porém, o sofrimento implícito neste processo é tão grande que a mente procura abrigo e cria para si mesma o que ela chama intuições, conceitos, crenças e agarra-se a essas coisas desesperadamente, com esperança de encontrar certeza. Este processo de fuga da atualidade, da incerteza, tem de necessariamente conduzir à ilusão, à anormalidade, às neuroses e desequilíbrio. Mesmo que aceitem essas instituições , essas crenças, e nelas tomem abrigo, se, apesar disso, se examinarem a si mesmos com profundidade, verificarão que existe ainda o medo, a incerteza continua.

Este estado vital de incerteza, isento do desejo de a ele escapar, é o início de toda a verdadeira busca da realidade. O que é que realmente vocês estão procurando? Só pode haver um estado de compreensão, uma percepção direta daquilo que é, da atualidade, pois, a compreensão não é um fim, um objetivo a ser atingido. O discernimento do processo efetivo do "eu", do seu vir-a-ser e de sua verdadeira dissipação é o começo e o fim da busca.

Para entender aquilo que é, deverá a compreensão principiar por si mesmos. O mundo é uma série de processos indefinidos, variados, que não podem ser plenamente compreendidos, pois cada força é única em si mesma e não pode ser verdadeiramente perceptível em sua totalidade. O processo integral da vida, da existência no mundo, depende inteiramente de forças únicas e só poderão compreender  por meio desse processo que se acha focalizado no indivíduo sob a forma de consciência. É possível alcançarem superficialmente o significado de outros processos; porém, para compreender a vida plenamente, necessitam entender o processo que opera em vocês, sob a forma de consciência.

Se cada qual de vocês, profunda e significativamente, compreender esse processo que opera sob a forma de consciência, então nenhum de vocês lutará para si mesmo, existirá para si nem se preocupará consigo. Presentemente, cada qual preocupa-se consigo próprio, lutando para si e agindo antissocialmente, por não se compreender a si mesmo, plenamente; e é somente pela compreensão de nossa força única como consciência, que há a possibilidade de compreender o todo. Quando plenamente discernirem o processo do "eu", cessarão de ser uma vítima que luta sozinha no vácuo.

Esta força é única, e em seu próprio desenvolvimento torna-se consciência, de onde surge a individualidade. Por favor, não decorem esta frase; porém, antes, pensem a respeito, e assim verificarão que esta força é única para cada um e, mediante seu desenvolvimento auto-ativo, torna-se consciente. O que é esta consciência? Ela não pode ter localização alguma, e tão pouco pode ela dividir-se em superior e inferior. A consciência compõe-se de múltiplas camadas de lembranças, de ignorância, de limitações, de tendências e anseios. Ela é discernimento e tem o poder de compreender os valores últimos. É o que nós chamamos individualidade. E não perguntem: "nada mais existe além disto?" Isso será discernido, quando o processo do "eu" houver terminado. O que importa é se conhecer a si mesmo, e não — saber o que está para além.

Vocês apenas procuram recompensa para os seus esforços, algo a que possam se apegar no presente desespero, incerteza e temor de vocês, que evidenciam ao perguntar: existe algo além desse "eu"?

Ora, a ação é esse atrito, essa tensão que se dá entre a ignorância, o anseio e o objeto de seu desejo.

Esta ação sustenta-se a si própria e é isso que dá continuidade ao processo do "eu". Portanto, a ignorância, pelas suas atividades por si mesma sustentadas, perpetua-se sob a forma de limitações por ele próprio criadas, impedem as verdadeiras relações com os outros indivíduos, com a sociedade. Estas limitações isolam o indivíduo, e por isso surge o medo constantemente. Esta ignorância, no que a nós diz respeito, cria sempre o medo, com suas múltiplas ilusões, e daí decorre a busca da união com o eu superior, com qualquer inteligência super-humana, com Deus, e assim por diante. Deste isolamento provém a continuação de sistemas, de métodos de conduta, de disciplina.

Pela dissolução destas limitações, vocês começam a discernir que a ignorância não tem princípio, que se mantém a si própria pelas suas próprias atividades, e que este processo só pode finalizar pelo reto esforço e pela reta compreensão. Vocês podem colocar isto à prova, mediante a experiência e discernir, por si mesmos, que o processo da ignorância é isento de começo e isento de terminação. Se a mente-coração estiver presa por qualquer preconceito particular, sua própria ação tem de criar outras limitações, e, portanto, produzirá maior tristeza e confusão. Assim, perpetua ela sua própria ignorância e suas próprias tristezas.

Se vocês se tornarem plenamente conhecedores desta atualidade, mediante a experiência, então, se dará a compreensão do que seja o "eu", e o esforço reto poderá lhe colocar fim.

Este esforço é o percebimento no qual não há seleção ou conflito de opostos, uma parte da consciência vencendo a outra parte, um preconceito sobrepujando a outro. Isto exige um pensamento vigoroso, que libertará a mente de temores e limitações. Somente então haverá o permanente, o real.

Pelo simples afirmar que toda a existência está condicionada, jamais descobrirão se existe um estado que possa não ser condicionado. Ao se tornar integralmente apercebido do estado condicionado, cada um começará a compreender a libertação que vem através da cessação do medo. 

 Krishnamurti